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Pode um sócio desvincular-se unilateralmente de aval dado em livrança em branco após sair da sociedade?

Portugal - 

O STJ decidiu que a vinculação para aval em livrança em branco pode, em determinados termos e circunstâncias, ser objeto de denúncia por parte de ex-sócio ou ex-sócio-gerente da sociedade avalizada.

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº 1/2025, publicado em Diário da República, 1ª Série, em 08.01.2025, no seguinte sentido: “(1) A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título. (2) A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos”.

Trata-se de uma decisão com manifesta relevância económica e social ao incidir sob uma prática comum e com larga aceitação no comércio jurídico. A entrega e subscrição de livrança em branco por sociedade avalizada pelos seus sócios ou sócios-gerentes, pela função de garantia que desempenha e por constituir um meio expedito e prático de mobilizar (e, em caso de incumprimento, de executar), facilita a celebração de contratos com a sociedade, designadamente a concessão de crédito a esta, sobretudo no contexto de sociedades por quotas.

O presente alerta expõe, sumariamente, os pontos mais relevantes quanto ao sentido, termos e fundamentação desta decisão:

Questão a resolver pelo STJ

Saber se é admissível, e em que termos, a desvinculação unilateral da garantia dada por um sócio ou sócio-gerente que presta aval em livrança em branco após saída da sociedade avalizada.

Resposta dada pelo STJ

A decisão uniformizadora do STJ foi no sentido que tal desvinculação é possível mediante denúncia a efetuar nos seguintes termos principais:

  • Tem de ser efetuada até ao preenchimento do título pelo credor nos termos do acordo/pacto de preenchimento.
  • Tem de se estar perante uma vinculação duradoura (que emerge do acordo/pacto de preenchimento ou do próprio contrato de financiamento) sem prazo definido ou, sendo por prazo renovável, a denúncia é ainda possível decorrido o prazo inicial sem que o avalista em branco tenha a faculdade de obstar à renovação da vinculação.
  • Pode ser efetuada no âmbito de contratos de financiamento bancário em que o fluxo financeiro que determina a dívida cambiariamente garantida depende das solicitações feitas pela sociedade ao banco a cada momento (como sucede, por exemplo, nos casos de contratos de abertura de crédito simples ou em conta corrente).
  • Não pode ser efetuada nos casos em que a dívida garantida está previamente determinada (como sucede, por exemplo, nos casos em que a livrança é avalizada em branco para garantia de um contrato de locação financeira ou de um contrato de mútuo bancário).
  • A desvinculação só será eficaz para o futuro, ou seja, em relação à responsabilização do sócio-avalista por montantes solicitados pela sociedade após a denúncia produzir os seus efeitos, significando, ainda, que a livrança pode ser completada e nela incluídos todos os créditos resultantes de operações celebradas até à produção de efeitos da denúncia.
  • O exercício da faculdade da denúncia tem de ser conforme à boa-fé, sendo que a saída do sócio ou do sócio-gerente da sociedade avalizada permite afirmar tal conformidade.

Argumentos principais sustentados pelo STJ

A decisão uniformizadora do STJ sustenta-se nos seguintes argumentos principais:

  • A assinatura aposta em livrança em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchida a livrança não é ainda um verdadeiro aval, não constitui uma obrigação cambiária e, como tal, a questão da desvinculação não pode ser resolvida à luz das especificidades das obrigações cambiárias, como se estivéssemos perante um aval aposto em título completo.
  • A desvinculação coloca-se e verifica-se no plano do acordo/pacto de preenchimento da livrança em branco e produz efeitos no vínculo (extra-cartular) emergente de tal acordo/pacto de preenchimento e não na livrança.
  • A liberdade das partes não é conciliável com a perpetuidade dos vínculos contratuais.
  • Não há afetação de forma intolerável dos interesses do banco credor pois projetando-se a eficácia da denúncia/desvinculação apenas para o futuro, o banco credor mantém as garantias relativamente ao crédito já concedido à sociedade. Além disso, continua a ter ao seu alcance mecanismos suficientes à defesa dos seus interesses, podendo invocar, para evitar a libertação de novas tranches de financiamento, a exceção de não cumprimento, a resolução ou até a modificação do contrato por alteração das circunstâncias, bem como pode prever, no acordo de preenchimento, as consequências da desvinculação do “avalista”. 
  • Não é razoável o banco credor pretender manter vinculados ex-sócios já alheados da sociedade nem é razoável a sociedade continuar a beneficiar da garantia de sócios que já deixaram a sociedade.

Comentários

  • Não é a primeira vez que o STJ se pronuncia para efeitos de uniformização de jurisprudência sobre esta temática. Já o tinha feito no AUJ nº 4/2013, de 21.01 mas fê-lo, segundo alguns, em termos que suscitava dúvida e debate sobre se tal pronúncia uniformizadora (e que conduzia a um resultado oposto ao agora fixado) se aplicava também ao “avalista em branco” entendida a posição deste, antes do preenchimento do título, como não sendo de obrigado cambiário e o “aval em branco” como não sendo ainda vinculação cambiária.
  • Foi, assim, com o propósito declarado de evitar equívocos que o STJ se propôs no AUJ nº 1/2025 revisitar esta temática.
  • A decisão uniformizadora agora fixada pelo STJ no AUJ nº 1/2025 - no sentido de permitir a desvinculação ao ex-sócio ou ex-sócio gerente que presta aval em livrança em branco nos termos e pelos fundamentos agora fixados - não é inovadora pois filia-se numa tese que, desde há alguns anos, vem sendo afirmada e desenvolvida por alguma doutrina e jurisprudência.
  • Embora possa ser discutível, para os defensores desta tese, qual o meio tecnicamente mais adequado para mobilizar tal desvinculação - se a denúncia, conforme solução ora adotada pelo STJ, ou se, entre outros, a resolução por inexigibilidade, justa causa ou por alteração das circunstâncias - afigura-se que a opção pela via da denúncia adotada pelo STJ visou, sobretudo, abranger um leque maior de situações fáticas que reclamam idêntica tutela, dado que o STJ, na sua decisão, entende que a perda da qualidade de sócio por parte do avalista, por si só, não poderá ser considerada, via de regra, justa causa de resolução nem reveste de imprevisibilidade suficiente que permita o recurso à alteração de circunstâncias.       
  • Com independência dessa discussão técnica quanto ao meio mais adequado para acionar a desvinculação, a qual sustenta alguns dos votos de vencido dos Juízes Conselheiros que participaram na decisão, avulta nesta decisão uniformizadora um generalizado consenso no STJ quanto à admissibilidade de tutela jurídica a conceder ao sócio-avalista nestes casos.
  • Por último, esta decisão deverá constituir um alerta para as entidades financiadoras reforçarem os cuidados a terem na redação de pactos de preenchimento de títulos cambiários em branco (e respetivos contratos de financiamento) por forma a acautelarem eventuais impactos negativos decorrentes do sentido fixado por esta jurisprudência uniforme, o qual, não sendo inovador, agora se reforça.