Venda judicial de imóvel hipotecado com arrendamento rural posterior à hipoteca não faz caducar o arrendamento
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu Acórdão uniformizador de jurisprudência (Acórdão STJ nº 14/2024, de 12.12) no seguinte sentido: “A venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado posteriormente à hipoteca, não faz caducar este arrendamento de harmonia com o preceituado no nº 1 do art. 22º do RAR, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824º do CC”.
Por se tratar de uma decisão com manifesta relevância económica e social bem como com impacto em mercados como os do crédito hipotecário ou das transações de carteiras de Non-Performing Loans (NPL), importa conhecer e ter em conta o sentido e os termos da mesma.
O referido Acórdão foi em 12.12.2024 publicado em Diário da República, 1ª série e o presente alerta expõe os pontos mais relevantes da fundamentação desta decisão.
Questão a resolver pelo STJ
Saber se, no âmbito de uma ação executiva comum, a venda judicial de um imóvel hipotecado e arrendado, por contrato de arrendamento rural celebrado posteriormente à hipoteca, provoca a caducidade do arrendamento, por força do disposto no nº 2 do art. 824º do Código Civil, ou se, ao invés, por força do disposto no nº 1 do art. 22º do RAR (Decreto-Lei nº 385/88, de 25.10, na versão do Decreto-Lei nº 524/99, de 10/12), tal caducidade não ocorre.
A decisão uniformizadora do STJ foi negativa.
Argumentos principais sustentados pelo STJ
- Natureza obrigacional do contrato de arrendamento (rural).
- A venda judicial não consta da lista dos casos de caducidade do contrato de arrendamento (art. 1051º do CC).
- O legislador no nº 1 do art. 22º do RAR, não ignorando a controvérsia doutrinal e jurisprudencial quanto à aplicação do nº 2 do art. 824º do CC, estatuiu expressamente (e de forma mais enfática que o art. 1057º do CC) que o arrendamento não caduca pela transmissão do prédio.
- Não se pode afirmar, presentemente, que o arrendamento tenha uma aptidão igual à dos direitos reais suscetível de comprometer a venda executiva do bem pelo melhor preço, pois trata-se de um direito pessoal de gozo que não tem atualmente as características de um direito potencialmente ilimitado.
- As últimas leis de arrendamento rural têm acentuado a relevância social e económica deste direito.
- Ainda que possam existir comportamentos fraudulentos de proprietários, devedores hipotecários, que, ao arrendarem os seus prédios hipotecados, estarão a defraudar as expectativas do credor hipotecário, a não caducidade do arrendamento não deixa os credores hipotecários totalmente desprotegidos, os quais podem recorrer aos seguintes instrumentos:
- Exigir a substituição ou reforço da hipoteca, sob pena da exigibilidade do imediato cumprimento da obrigação ou, no caso de obrigação futura, o registo de hipoteca sobre outros bens do devedor.
- Recorrer, verificados os respetivos requisitos legais, à ação de impugnação pauliana contra o devedor que onerar o prédio hipotecado.
- Estipular, de forma preventiva, convenção no sentido do crédito hipotecário se vencer logo que o prédio hipotecado seja onerado com o arrendamento.
Comentário
- O sentido desta decisão do STJ não surpreende atenta a recente uniformização de jurisprudência fixada pelo STJ no seu Acórdão nº 2/2021, de 05.08, ainda que a propósito de contrato de arrendamento urbano para habitação e da venda judicial em processo de insolvência.
- Esta decisão do STJ é fortemente tributária dos argumentos que sustentaram a (controversa) tese que teve vencimento no Acórdão nº 2/2021, nos quais avultam uma prevalência dos interesses dos arrendatários sobre o dos credores hipotecários.
- Não obstante o esforço do STJ em sustentar que os credores hipotecários não ficam totalmente desprotegidos, os mecanismos que identifica são, como o próprio STJ reconhece, frágeis.
- Esta decisão vem, na esteira do Acórdão nº 2/2021, acentuar a perda de segurança e de robustez jurídica da hipoteca como garantia do credor.
- Na nossa publicação anterior, relativa ao Acórdão nº 2/2021, já alertávamos para o possível alargamento desta jurisprudência relativamente às vendas judiciais realizadas no âmbito das ações executivas, o que agora se confirma.
- Por último, e à semelhança do que já se tinha verificado quanto ao Acórdão nº 2/2021, o sentido da tese que teve vencimento está longe de reunir o consenso dos Juízes Conselheiros (17 votos a favor vs 11 votos contra).
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