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Preços de transferência: Recomendações relativas à crise da COVID-19

Portugal - 

Comentário Fiscal 

A pandemia causada pelo novo coronavírus conduziu a uma crise global de dimensões até agora desconhecidas, primeiro no campo da saúde e, seguidamente, a nível económico. Neste nível, e muito embora sejam inúmeras as discussões acerca das diferentes formas e momentos em que a tão desejada recuperação possa ter lugar, a verdade é que apenas é possível prever neste momento que os efeitos da pandemia na economia perdurarão. Este impacto reflete-se também no domínio dos preços de transferência, com consequências muito relevantes na forma como as transações vinculadas são realizadas dentro dos grupos multinacionais, na forma como os preços são ajustados em tais transações, e na abordagem a estas questões pelas administrações fiscais.

Apresentamos seguidamente, num formato de perguntas e respostas, alguns temas a considerar em matéria de preços de transferência no contexto da COVID-19.

Se o grupo sofrer prejuízos ao nível consolidado, deverá continuar a garantir lucros aos distribuidores de risco limitado ou aos prestadores de serviços intragrupo?

Muitos grupos económicos operam através de modelos cujas filiais são entidades de risco limitado, geralmente produtores por encomenda ou distribuidores e prestadores de serviços de risco limitado.

Estas entidades são remuneradas pelas funções que desempenham através de uma margem reduzida (embora garantida) sobre os seus gastos ou as suas vendas, enquanto o lucro ou o prejuízo residual  é atribuído à contraparte, considerada o principal da operação.

O abrandamento da atividade económica e o aumento dos gastos estruturais e extraordinários, com os quais os grupos multinacionais se deparam, podem colocar em causa a adequação destes esquemas de remuneração.

Para fazer face a esta situação, poderá ser necessário aplicar “exceções” nas políticas de preços estabelecidas, ou ajustamentos temporários que permitam ter em conta as atuais circunstâncias.

Essas exceções ou ajustamentos deverão basear-se sempre em análises funcionais e setoriais, dando especial atenção às cláusulas contratuais.

O que deve ser tomado em consideração caso o grupo tenha de introduzir alterações na sua cadeia de valor ou de fornecimento, ou na forma de desenvolvimento do negócio entre entidades relacionadas?

A cadeia de valor e as habituais operações dos negócios podem ser afetadas de várias formas, visto que em quase nenhuma circunstância estavam concebidas para absorver os efeitos de uma crise como a que nos deparamos.

Fenómenos como a centralização / descentralização, relocalização ou digitalização de atividades afetarão de forma decisiva o contributo que as diferentes entidades de um grupo multinacional darão para gerarem valor para o negócio (e para o controlo dos riscos).

Por esse motivo, será necessário adequar as políticas de preços de transferência, que deverão ser adaptadas ao novo perfil funcional e de riscos de cada entidade.     

É também possível que surjam situações em que seja necessário avaliar se um modelo de distribuição de lucros (profit split) pode ser aplicado, com ou sem ajustamentos adicionais, para a atribuição dos prejuízos acumulados a nível global entre as entidades de um grupo.

Todos estes aspetos devem ser revistos detalhadamente, desenvolvendo e documentando exaustivamente os argumentos operacionais e económicos que justifiquem e permitam suportar no futuro a razoabilidade do ajustamentos efetuados.

Que aspetos devem ser considerados na tomada de decisões financeiras por parte do grupo?

A crise decorrente da COVID-19 fará com que muitos grupos sofram problemas de liquidez provocados pela redução ou atraso na geração de receitas.

Os grupos multinacionais dispõem de diversas opções para aliviarem estas dificuldades: renegociar acordos financeiros, diferir o pagamento de juros, restruturar dívida de curto prazo para longo prazo, centralizar os fluxos de caixa via cash pooling, entre outras.

Estas mudanças nas estruturas de financiamento, juntamente com as ajudas económicas que alguns Estados concederão às empresas nacionais, tornam necessária a reavaliação da nova solvabilidade dos devedores, da sua capacidade de pagamento futura e das várias alternativas existentes.

Será também necessária a determinação de uma nova remuneração de mercado, que atenda às novas diretrizes publicadas pela OCDE em matéria de transações financeiras.

Os encargos com serviços de apoio à gestão ou o uso de ativos intangíveis podem ser reajustados se fizerem com que as entidades adquirentes incorram em prejuízos (ou os agravem)?

Outra fórmula para amortecer o impacto da pandemia no fluxo de caixa das empresas pode ser a flexibilização das condições para satisfazer certos pagamentos de serviços ou de royalties.

No âmbito dos grupos multinacionais também se pode propor uma redução destes encargos, ou mesmo  a sua suspensão, sempre que haja uma similitude com o comportamento de terceiros independentes.

Também se deveria verificar se, na atual situação, os serviços adquiridos ou os intangíveis cedidos estão a gerar lucros reais (volume de vendas superior, maior eficiência, etc.) ao seu adquirente.

Neste sentido será fundamental efetuar a revisão aprofundada das circunstâncias factuais e técnicas de cada caso concreto, assim como o estudo das opções realisticamente disponíveis com que as partes podem contar.

O que se deve fazer se os efeitos da crise provocarem o incumprimento dos termos de um APPT atualmente em vigor?

Muitos contribuintes podem ter dificuldade em cumprir algumas das hipóteses críticas estabelecidas em Acordos Prévios de Preços de Transferência (APPT), bem como os pressupostos (quantitativos ou qualitativos) considerados na sua celebração antes da interrupção causada pela COVID-19.

Nestes casos, devem examinar-se os termos e condições do acordo para determinar se este permite algum tipo de ajustamento em caso de eventos imprevistos.

Também não se deve perder de vista a conveniência de contactar a administração tributária para a informar e avaliar, conjuntamente, a necessidade de introduzir alterações nos APPT, ou até avaliar a sua possível revogação.

Em todo o caso, e dado o grau de incerteza, será aconselhado procurar este tipo de acordos para as operações que, pela sua relevância quantitativa ou a sua complexidade técnica, sejam de difícil avaliação do ponto de vista dos preços de transferência.

Os contratos intragrupo  contemplam uma cláusula que permita excecionar ou introduzir alterações na política de preços de transferência como consequência da crise? O que fazer se tal cláusula não estiver prevista?

Normalmente, os contratos entre partes independentes contêm uma cláusula de força maior, que prevê soluções no caso de ocorrerem acontecimentos extraordinários.

No entanto, é possível que os contratos intragrupo não contemplem esta cláusula, ou não o façam de forma suficientemente detalhada ou adaptada aos factos.

Nesses casos, é legítimo que as partes renegociem os termos contratuais, a fim de reequilibrarem a relação, manterem a rentabilidade tanto quanto possível, ou evitarem ou atenuarem uma situação de prejuízo, conforme reconhecido pelas Orientações de Preços de Transferência da OCDE e como, na prática, partes independentes o fariam.

Nesse sentido, será particularmente relevante a análise dos contratos celebrados entre partes independentes aos quais se possa ter acesso, e documentar e suportar adequadamente as variáveis consideradas para conciliar o contrato com as novas circunstâncias económicas.

Os benchmarks preparados em períodos passados podem ser  utilizados para a documentação de operações vinculadas do período de 2020?

Um dos grandes problemas que as empresas podem encontrar no momento de prepararem a documentação das operações vinculadas do período de 2020 é o, mais que provável, desajuste entre os benchmarks preparados antecipadamente e as circunstâncias da atual situação.

Tal leva a que, salvo em raras exceções, as diferenças entre este período e os passados sejam substanciais, tanto na entidade em análise como nos comparáveis.

Para resolver essa questão, poderão ser necessários ajustamentos de comparabilidade que permitam reunir, de forma adequada, as condições económicas e de negócio atuais.

Embora cada caso tenha as suas especificidades e exija uma análise pormenorizada, seria de considerar alguns ajustamentos que visem refletir: 1) efeitos da inatividade; 2) gastos extraordinários (gastos em publicidade, cancelamentos de inventário, restruturação de despesas); 3) flutuações nas taxas de câmbio; 4) alterações na solvabilidade das entidades, etc.

Algo semelhante acontecerá com a documentação de preços de transferência (masterfile e localfiles): será necessária uma revisão aprofundada do conteúdo destes documentos para os adaptar às circunstâncias extraordinárias (tanto no âmbito operacional como económico) que tenham lugar em cada grupo, em consequência da crise.